A tripulação de bordo da Kombi do Resgate Social é
composta por três fiscais e um motorista em cada turno. Foram escalados quatro
turnos de oito horas. Num desses turnos faltaram dois fiscais e o motorista, eu
consequentemente me habilitei a dirigir durante a ronda vespertina. A certa
altura avistei um andarilho nos acenando, estacionei a Kombi no acostamento
entre a Avenida Alvim Bauer e a Atlântica. O fiscal que me acompanhava na ronda
era gago e falava ao celular com alguém aparentemente importante.
Desembarquei da Kombi e, para minha surpresa o cidadão
gaguejava ininterruptamente. Acabei chamando o fiscal Dão, ingenuamente
acreditando que um entenderia o outro com mais facilidade. Criei um belo
problema. O andarilho gago acabou achando que Dão estava debochando e o
imitando e, por mais que o fiscal tentasse explicar o gago não parava de
discutir. Foi aí que o fiscal, sem mais alternativa, desceu da Kombi e
perguntou o que acontecia.
O andarilho olhou para Dão e proferiu:
-- Vo-vo-vo-cê es-es-tá me arre-re-re-remen-dando?
Na tentativa de ajudar, acabei intervindo:
-- Não! Não! Ele não está lhes arremendando, pois ele
também é gago.
Confesso, fui infeliz ao falar desse jeito. O lazarento
do gaguinho ficou bravo comigo também. O fiscal começou a enfurecer-se:
-- Ga-ga-gu do ca-ca-cara...
E eu o interpelei antes que a coisa ficasse pior.
-- Dão, por favor, se acalme. Entendo vocês dois, mas
você tem que me ajudar nessa.
A verdade é que chamar o Dão, gago como era, para ajudar
no caso do andarilho era um erro já que os dois eram gagos. Mas quis pregar uma
peça nele pela intimidade que tínhamos na equipe da migração, sem esquecer que
fomos colegas políticos durante alguns mandatos. Dão já havia sido vereador por
duas vezes consecutivas.
Bem, voltando ao caso da abordagem, enquanto eu tentava
acalmar os ânimos, o gago avistou uma viatura da polícia e acenou aos policiais
que se aproximaram da Kombi. Os policiais nos cumprimentaram, expliquei o
ocorrido, sobre o andarilho estar embriagado e que o estávamos ajudando. O gago
retrucou, dizendo que estava tencionado a ir a Joinville e que Dão, nosso
fiscal o estava imitando.
Os policiais explicaram que Dão tinha o mesmo problema de
dicção que ele, e que eramos as pessoas certas a ajuda-lo. Foi então que os
dois gagos enfim se acertaram, selando trégua com um aperto de mão e agilizando
para que seguíssemos rumo à rodoviária. Consultamos o Ciasc a fim de saber se o
homem era mesmo de Joinville, e o embarcamos rumo a sua cidade.
Nossa rotina a bordo da Kombi é sempre assim: prestar um
serviço difícil, complexo, que exige paciência e compreensão, mas que ao mesmo
nos satisfaz e diverte. Até mesmo pelo fato de nos espelharmos, muitas vezes,
nos casos que encontramos. Todos sabem, já fui alcoólatra e morador de rua e
hoje, humildemente faço parte da direção do Departamento de Resgate Social.
Faço o possível para que todo ser humano que encontramos na rua seja tratado
com o devido respeito e compaixão.
Este é um fragmento do Diário de Bordo da Kombi, novo livro de Paulo Roberto de Souza que será lançado ainda no início deste ano.
Este é um fragmento do Diário de Bordo da Kombi, novo livro de Paulo Roberto de Souza que será lançado ainda no início deste ano.